Compartilhar alianças, casa e rotina é praxe para os casamentos tradicionais, mas uma das trocas envolvidas no processo é, historicamente, unilateral: a de sobrenome, feita, em geral, pelas mulheres. No Ceará, porém, elas têm optado pelo oposto. Mais da metade já não altera o nome após casar.
No ano passado, mais de 29 mil casamentos foram oficializados no Estado e, do total, 16.244 mulheres (55%) não alteraram o “nome de solteira”. Em 16.109 dos casos, nenhum dos cônjuges mudou o nome; e em 135 deles, somente o homem alterou.
Já neste ano, mais de 9 mil casais celebraram a união civil – 5 mil não alteraram os nomes, e em 55 dos casais, somente o homem incorporou o nome da esposa ou do esposo. No total, neste ano, 5.364 mulheres casaram e mantiveram os nomes inalterados.
“NÃO SOU PROPRIEDADE PRA ME COLOCAREM NO NOME”
A cearense Andressa Corrêa, 38, também foi na contramão do que se tem como “tradição”. Há 11 anos, quando se casou, chegou a ser questionada “sutilmente” pela decisão de não incluir o sobrenome do marido – mas se manteve firme.
“Falei que não adotaria o sobrenome, que não concordava com isso. Sempre pensei assim, que se fosse casar um dia, não mudaria meu nome, não deixaria de me chamar como sempre me chamei. Não sou propriedade pra me colocarem no nome”, sentencia.
Ela lembra que, à época, “não tinha documentos importantes”, então alterar o sobrenome, se desejasse, não seria um grande problema. A decisão foi somente por ideal.
Acho que as mulheres ainda fazem isso por preconceito da sociedade. Ou porque não saberiam responder se fossem questionadas pelos maridos.
ANDRESSA CORRÊA38 anos
Para a aeroviária Priscila Loren, 36, acrescentar o sobrenome do marido “não faz sentido, dá trabalho, tem que mudar documento”. Por isso, quando assinou a união estável, há 5 anos, manteve o “nome de solteira”.
“A família questiona, sim, o porquê, mas sigo sem o nome dele. Acho que isso é mais por uma questão de sociedade mesmo, as mulheres acabam cedendo a essa pressão”, opina.
“SÍMBOLOS IMPORTAM E NOS APROPRIAMOS DESSE”
Maria Camila Gabriele Moura Nogueira e Anatole Nogueira Sousa Gabriele. Os nomes assim, grandes e mesclados, têm razão de ser: por escolha, a psicóloga de 34 anos e o advogado de 36 adotaram os sobrenomes um do outro. Ela, o Nogueira. Ele, o Gabriele.
Há 5 anos e meio, quando se uniram oficialmente, Camila e Anatole entraram para a estatística seleta de casais em que o homem também modifica o “nome de solteiro” – o que, como ele faz questão de ressaltar, “foi uma decisão bem orgânica”.
“São valores que compartilhamos, foi meio óbvio que a gente faria isso. Foi bem tranquilo, minha sogra até ficou envaidecida de eu ter pego o sobrenome dela”, brinca Anatole.
Camila reforça que o casal sempre conversou muito sobre questões culturais e “como algumas culturas merecem ser desconstruídas”, e que não via sentido em, no contexto atual, somente a mulher receber o sobrenome.
“A partir do momento em que fomos trocar alianças, ficou claro também trocar rotina, tarefas, funções e sobrenomes. Família e amigos já sabem que temos um relacionamento de troca, mas noto o estranhamento de pessoas desconhecidas”, diz a psicóloga.
O casal também compartilha a ideia de que “há um simbolismo por trás” da troca de sobrenomes, uma vez que, a partir disso, “vem a nossa família, que é uma fusão de histórias, de antepassados, o que é muito bonito”, pontua Anatole.
É sobre um relacionamento sem grandes assimetrias, de troca de vidas, sobrenomes, afetos, afinidades e dificuldades. Símbolos importam, não são impostos, acontecem. Fico orgulhosa de termos nos apropriado tão organicamente desse.
MARIA CAMILA MOURA
Psicóloga
ATÉ 2002, HOMEM NÃO PODIA MUDAR O NOME
Por herança religiosa e de uma sociedade patriarcal, a mulher, até 1962, era obrigada a adotar o sobrenome do marido. Com a criação do Estatuto da Mulher Casada, naquele ano, veio a desobrigação do uso, como lembra Conceição Rodrigues, professora de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE).
Pesquisadora da história das mulheres, Conceição explica que no primeiro Código Civil do Brasil, de 1916, “já existia a obrigatoriedade de a mulher incorporar o nome do marido – e precisava ser o sobrenome do pai dele, para manter a linhagem do patriarcado”.
Só em 2002, quando foi sancionado o atual Código Civil, veio a permissão para que o homem também utilizasse o sobrenome da esposa após a união.
“As leis são filhas do seu tempo. Conforme as gerações vão passando, as dinâmicas sociais vão mudando e as leis têm de acompanhar, embora às vezes a sociedade esteja avançada numa questão e a legislação não acompanhe”, analisa a professora.
Para ela, um dos fatores pelos quais as mulheres têm optado por manter o nome intacto é justamente a facilidade do divórcio: sob a consciência da fragilidade do “felizes para sempre”, as cearenses se abstêm da burocracia de mudar os documentos pessoais.
Agora, as pessoas estão se divorciando mais, porque resistem menos a relações tóxicas, aguentam menos passar por situações de conflito. E, por fim, se não é mais obrigatório incluir o nome, não fazem.
Conceição ilustra que ela mesma enfrenta transtornos por ter adotado o sobrenome do marido no 1º casamento: antes do fim da relação, o certificado do mestrado foi emitido com o “nome de casada”. Até hoje, precisa apresentar, “casado” ao diploma, a certidão de divórcio.
Questionada sobre o que esperar das próximas gerações, ela observa que “a História não segue uma linha reta”, e que, no futuro, é possível que “haja uma onda conservadora de mulheres que prefiram, achem interessante adotar o sobrenome do marido. Mas não é a tendência atual”.
Fonte: Diário do Nordeste