Da ancoreta no lombo do jumento à larga produção em escala que envasa diversas garrafas em sequência. O caminho percorrido pela cachaça no Ceará passa por centenas de anos de transformação, desde o século XIX até esta terça-feira (13), data marcada como Dia da Cachaça.
O dia 13 de setembro é apontado como o Dia Nacional da Cachaça em alusão a um episódio ocorrido no século XVII, quando Portugal encerrou a produção e a comercialização de cachaças no Brasil dando origem ao episódio conhecido como Revolta da Cachaça na história brasileira.
A bebida, inclusive, teve projeto de lei do deputado Valdir Colatto em 2009, levado ao Senado em 2017 e aprovado por comissão em outubro do ano passado, estando desde novembro à espera de deliberação do Plenário.
“A cachaça, na época, era vendida a granel, por medida, porque não existia o engarrafamento. Então, saíam as ancoretas no lombo do jumento na região vendendo a cachaça a granel, por ‘medida canada’, que era o recipiente com capacidade de cinco litros”, explica Paula Sena, supervisora de atendimento do iPark, equipamento em Maranguape, na Região Metropolitana de Fortaleza, que abriga o Museu da Cachaça.
A bebida, então, tem passado por diversos processos de modernização, em grandes indústrias, que altera desde o modo como a cana-de-açúcar é moída, atribui sabores diferenciados ao líquido, e reinventa os designs das embalagens das garrafas.
As mudanças também estão nos públicos consumidores, conforme Ninno Amorim, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e autor de tese sobre Antropologia da Cachaça no Brasil.
“A cachaça já é popular no Brasil há muito tempo. Esse processo de ‘gourmetização’ que se dá a partir dos final dos anos 1990 e ganha força no início do século XXI é um processo para fazer com que a classe média, que não simpatiza com o povo brasileiro, e as elites brasileiras, que não simpatizam com os hábitos do povo brasileiro, possam ter uma cachaça exclusiva para eles”, avaliou o pesquisador.
Terra roxa
A história da cachaça no Ceará caminha lado a lado com a Ypióca, fábrica fundada no Ceará em 1846, com primeira sede localizada onde hoje fica o Ipark, equipamento que possui o Museu da Cachaça e outras opções de atividade de laser, como tirolesa e lago para banho. O nome “Ypioca” vem do tupi-guarani e significa “terra roxa”, que é uma referência ao solo bom para o plantio de cana-de-açúcar.
A empresa foi vendida em 2012 para a multinacional britânica Diageo, maior fabricante do mundo de bebidas alcoólicas premium. A Ypióca completou 176 anos em 2012, e é a marca de cachaça mais antiga do Brasil. A fábrica desenvolveu rótulos clássicos e premium ao lado dos quase dois séculos de funcionamento.
O fundador da Ypioca foi Dario Telles de Menezes, imigrante português. O primeiro litro de cachaça foi produzido na região em 1846. “Ele trouxe na bagagem um alambique de cerâmica, que veio com ele de Portugal”, explicou Paula Sena.
A empresa deu um salto de produção quando foi assumida por Paulo Campos Telles, que foi eleito prefeito de Maranguape também posteriormente. Com ele, a Ypióca começou a pensar em novos objetivos, como criação de novos rótulos, novos produtos e também a relação com o estrangeiro.
“Ele exportou para a Alemanha a primeira cachaça do Brasil. A primeira exportada foi por ele em 1968 para Munich”, disse Paula Sena.
“A tradição que construiu nessa trajetória se soma a outros elementos, como uma identidade fortemente conectada à identidade do povo do Ceará, da linguagem aos costumes locais. Isso faz com que a Ypióca seja tantas vezes representada como símbolo do Ceará, um orgulho da terra, o que nos enche de orgulho”, disse Marcos Rocha, gerente de operações da Diageo.
“A Ypióca é extremamente cuidadosa em manter tradições que fazem da marca um símbolo do Ceará, mas também avalia constantemente mudanças que possam agregar mais qualidade ao seu portfólio. Por isso, investimos em novidades, entre as quais Ypióca Lima-Limão para compor a linha de bebidas saborizadas junto à Ypióca Guaraná, e na Ypióca Mestre, o mais recente lançamento, uma cachaça prata para consumidores mais exigentes que buscam sabor, qualidade e tradição”, comentou Marcos Rocha. A empresa fabrica ainda produtos envelhecidos, empalhados, que podem custar até R$ 137.
Ele avalia que a bebida é importante para toda a economia brasileira, assim como para a do Ceará. “Movimenta desde a área industrial até o setor de serviços, como bares, restaurantes e locais do segmento de hospitalidade, atendendo aos apreciadores da brasileiríssima caipirinha e de outras maneiras de consumir a bebida”, declarou.
Ele destacou ainda Ypióca Ouro, que ele informou ser a cachaça ouro mais vendida do Brasil. “É um exemplo também de tradição e busca por diferenciais. O produto é envelhecido e armazenado em madeiras tradicionais do Brasil, parte do diferencial também do parque industrial da Ypióca”, disse o gerente de operações.
Do popular à elite
Apesar das modernizações, o consumo e o trato da cachaça dentro da sociedade acende um alerta quando se volta para possíveis tentativas de diferenciar exacerbadamente os públicos que a consomem, como aponta o professor universitário Ninno Amorim.
“As colunas [processo moderno de produção] foram inventadas em 1970, no pro-álcool, em que o Brasil saiu à frente e vieram as colunas de destilação, que vieram a destilar a cachaça. As grandes empresas, que produziam em grande quantidade, trocaram o alambique pela coluna pela produtividade, porque o aproveitamento é maior, o desperdício é menor e o lucro é maior”, destacou o pesquisador.
Fonte: G1