Uma história que mal começou e foi interrompida de forma extrema. Como evitar partidas precoces como a da menina de 14 anos, skatista e adoradora de girassóis, que tirou a própria vida? De que modo é possível perceber os sinais? O que fazer para ajudar quando isso ocorre tão perto? O esforço na busca por respostas e na aplicação delas pode ser decisivo para salvar crianças e adolescentes.
Só nos primeiros oito meses deste ano, 36 crianças e adolescentes com idades entre 10 e 19 anos tiraram a própria vida no Ceará. São cerca de quatro registros por mês, um por semana, de um tema que ainda é pouco discutido: o suicídio infantil.
O número prova que casos de suicídio entre crianças e adolescentes são reais, ocorrem constantemente e são contabilizados pelas autoridades de saúde dentro dos códigos que integram a Classificação Internacional de Doenças (CID).
Embora o dado seja coletivo, o fato é que cada uma dessas pessoas faz parte de um grave problema de saúde pública que, apesar dos diferentes avanços em distintos níveis sociais, tem permeado cada vez mais o cotidiano de famílias no Estado.
As estatísticas de 2022, levantadas pelo Diário do Nordeste, se somam a um fenômeno que sempre ocorreu. Só nos últimos 10 anos, foram registrados 529 suicídios de pessoas de até 19 anos, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, com atualização até o dia 31 de agosto.
“Quando recebi a notícia, eu senti meu mundo desmoronar… Não conseguia acreditar, só queria acordar daquele pesadelo”. A reportagem conversou com uma cearense que perdeu a filha adolescente por suicídio, aos 14 anos, em abril deste ano. As duas não terão a identidade exposta.
Em nenhum desses quase 180 dias, a mulher deixou de pensar na menina que amava girassóis – hoje flores que adornam seu túmulo. É nesse local onde a mãe ainda se questiona o porquê, apesar de a filha ter deixado uma carta de despedida.
“Ela estava muito revoltada com a sociedade porque sofreu bullying na escola e não era aceita por alguns por causa da opção sexual dela. Ela também dizia ser não-binária, não aceitava seu corpo, entre outras coisas”, relata.
Dando sinais de que não estava bem, inclusive se autolesionando, a menina pediu ajuda. Passou a ser acompanhada por um psiquiatra, lutou contra a depressão e seus dilemas internos, mas partiu.
“Hoje, tento viver um dia de cada vez, viajo, convivo com os amigos. Quando a dor está insuportável, ligo pra minha mãe, que é minha melhor amiga. Minha outra filha também me ajuda bastante a superar essa dor, ela é minha força”, compreende a mulher.
Na percepção de quem passou pela tragédia, a mãe recomenda a outros pais e responsáveis alguns pontos de atenção em relação aos filhos e filhas:
- perceba se fazem desenhos com temática triste;
- tenha paciência e doe seu tempo para escutá-los;
- leve a sério quando dizem que não estão bem;
- pergunte se, na escola, sofrem qualquer tipo de preconceito ou rejeição;
- verifique se existe a prática da automutilação;
- respeite a opção sexual “porque isso mexe muito com o adolescente”.
Alexandre de Aquino, presidente da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissões Afins no Ceará (Abenepi) e chefe do serviço de psiquiatria do Hospital Geral de Fortaleza (HGF), afirma ser mito pensar que a adolescência é “a melhor fase da vida”.
Atualmente, em relação a décadas passadas, a pressão por um bom desempenho escolar cresceu. O bullying, especialmente o praticado por meio de redes sociais, e o histórico de psicopatologias dentro da própria família também são fatores de risco.
“Não só do ponto de vista genético, como também dos cuidados que essa criança ou adolescente recebe dos pais adoecidos, que geralmente não conseguem fornecer todas as necessidades emocionais que eles precisam naquela faixa etária”, explica.
E essas demandas não são poucas, como sublinha psicóloga Nágela Natasha Lopes Evangelista (CRP11/6882), especialista em saúde mental, professora de Psicologia e ex-presidenta do Conselho Regional de Psicologia da 11ª Região (CRP-11): crianças e adolescentes são sujeitos em formação de identidade, personalidade, relações pessoais, aceitação entre seus pares e descoberta de gostos.
Atravessados por tantas questões, os jovens podem recorrer a formas extremas de transparecer as angústias, como as automutilações, segundo aponta o assessor técnico da Coordenadoria de Políticas de Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), Rafael Ayres. As autolesões serão tema da reportagem de amanhã desta série que trata sobre a saúde mental de crianças e adolescentes.
Em comum, os três especialistas – Alexandre, Nágela e Rafael – defendem a necessidade de diálogo e escuta ativa dos adultos em relação ao que preocupa os jovens.
Se a gente não consegue falar de temas básicos, não vai conseguir falar sobre educação sexual, religião, política, consentimento e desejo de morte. Obviamente, respeitando a etapa de desenvolvimento humano desse sujeito: falar com uma criança a partir do entendimento dessa criança e falar com um adolescente na fase em que ele se encontra.
NÁGELA EVANGELISTAPsicóloga e presidenta do CRP-11
Ao descobrir sintomas depressivos, também é importante “fugir de qualquer repressão ou concepção de que é errado”, complementa Rafael Ayres. “O ideal é escutar e perguntar: o que é que você está sentindo? O primeiro ponto é um acolhimento. Muitos pais e responsáveis legais ainda se sentem sem um direcionamento para isso”.
Os adultos também precisam aprender a diferenciar o que seria um comportamento incomum do que a literatura científica chama de Síndrome da Adolescência Normal (SNA). O psiquiatra Alexandre de Aquino explica que é natural o jovem ficar mais introspectivo e recluso, ou mais reativo e irritado, inclusive desafiando os pais. O problema é quando tais quadros perduram.
“É ok se no restante do tempo ele está bem, convivendo com a família, saindo com amigos. Mas, quando começa a se distanciar inclusive dos amigos, com irritabilidade maior, demonstrando episódios de tristeza e choro, queda súbita de rendimento escolar e perda de interesse em coisas que gostava antes, passa a chamar atenção para um quadro depressivo”, detalha.
SEM BRIGAS OU PUNIÇÕES
A mãe mencionada no início desta reportagem interpretou corretamente os sinais dados pela filha, além de ajudá-la a conseguir apoio profissional.
Para a psicóloga Nágela Evangelista, é essencial se disponibilizar de forma integral para acolher o jovem em sofrimento, além de evitar julgamentos ou discursos punitivistas que tentem culpá-lo pelos problemas.
“Eu preciso entender o que está se passando e, a partir desse relato, pensar em estratégias para lidar com essas informações, deixando muito explícito que é um sentimento real, que a pessoa está sendo ouvida e que essa demanda vai ser acolhida”, diz.
Além disso, defende que as estratégias de tratamento sejam pensadas “com” a pessoa, e não apenas se ofereçam alternativas “para” ela. Afinal, o desejo de morrer é complexo e nem sempre há um motivo específico, mas resultado de “um contexto muito mais amplo”, sendo necessário entender e resguardar a autonomia do sujeito.
O psiquiatra Alexandre de Aquino também sugere não apontar que a ideação suicida “é falta de Deus”, já que este não é um fator de risco, nem minimizar o sofrimento da criança ou do adolescente.
No eixo de prevenção, o especialista recomenda a adoção de hábitos de vida saudáveis com efeito protetor contra quadros de ansiedade e depressão, como a prática de atividade física, boa alimentação, práticas de socialização e envolvimento com atividades artísticas.
Já ao se perceber que o adolescente apresenta maiores sinais de risco, “é importante buscar ajuda profissional o quanto antes, porque a resposta ao tratamento é melhor quanto mais precoce ele se inicia”.
PREPARO NAS ESCOLAS
Identificar demandas de saúde mental nessa população não depende só dos pais, mas deve contar com o suporte da rede escolar, como pondera Rafael Ayres, da Sesa.
Formações complementares para professores e educadores seriam acertadas “porque é justamente na escola onde esse fenômeno se apresenta, mas a gente vem percebendo que a gestão escolar fica sem saber como fazer”.
Nágela também aponta a necessidade dessa discussão no ambiente escolar não apenas durante o Setembro Amarelo, mas em outros períodos do ano, destacando tanto a valorização da vida quanto ferramentas de enfrentamento e posvenção ao suicídio.
Rafael Ayres destaca que, na rede pública de saúde, pode-se procurar ajuda nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), caso seja preciso um atendimento mais imediato, ou nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde se pode buscar encaminhamento para um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
ONDE BUSCAR AJUDA
Caso você esteja se sentindo sozinho, triste, angustiado, ansioso ou tendo sinais e sentimentos relacionados a suicídio, procure ajuda especializada em sua cidade. É possível encontrar apoio em instituições como o Centro de Valorização da Vida (CVV – 188) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
• Postos de saúde: as unidades são portas de entrada para obter ajuda especializada, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
• Centro de Valorização da Vida – CVV
Atendimento 24h
Contatos: 188 ou chat pelo site https://www.cvv.org.br
Corpo de Bombeiros Militar do Ceará (CBMCE)
Contato: 193
Fonte: Diário do Nordeste