Por Rafael Silva e Victória Ellen
“Aqui, a ligação à rede de esgoto foi crucial. Era um problema recorrente que a gente tinha: a questão do mau cheiro, do odor.” Essa fala é de Tayná Marques, moradora da Rua São Paulo, uma das mais conhecidas de Juazeiro do Norte e localizada no centro comercial da cidade. Ela é uma das residentes que aderiram ao esgotamento sanitário, um serviço operado pela Ambiental Ceará, empresa parceira da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece). Segundo Tayná, a adesão à rede trouxe muitos benefícios para sua qualidade de vida. Natural de Araripe, ela mudou-se para o município há 9 anos e, desde então, presenciou algumas transformações no cenário do saneamento básico da cidade.
Apesar dos avanços percebidos na quase uma década em que reside em Juazeiro do Norte, a própria Tayná, que trabalha como cuidadora escolar em um bairro distante da sua residência, ainda presencia um grande contraste na cidade. “Eu passo pelo bairro Franciscanos e chego até o Pio XII. É triste. Quando você desce, sente aquele mau cheiro, vê lixo por toda parte”. Para ela, a situação piora em épocas de chuva.
Segundo o Instituto Trata Brasil, Juazeiro do Norte investe R$152 por habitante em saneamento, um valor 36,9% superior à média brasileira, que é de R$111 por habitante. Mas, mesmo com um investimento considerável, o município figurou na 92ª posição entre as 100 cidades brasileiras mais populosas avaliadas sob o quesito indicadores de saneamento básico, que incluem acesso à água tratada, acesso à coleta e tratamento de esgoto.
O esgotamento sanitário ainda enfrenta muitos obstáculos para avançar, como a falta de educação ambiental, questões socioeconômicas e também políticas – é o que avalia a professora do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Amanda Sousa.
No âmbito da política, a docente ressalta um problema que vem se arrastando há uma longa temporada na cidade: a não aprovação do Plano Diretor Municipal (PDM) pelo atual legislativo.
“Eu gosto muito de brincar com os alunos dizendo assim: se a gente vai fazer um projeto numa cidade, um projeto de esgotamento sanitário, de abastecimento de água, de tratamento, se eu vou fazer isso numa cidade que não tem plano diretor, seria a mesma coisa que eu pedir para fazer um projeto elétrico e hidrossanitário de uma casa que não existe ainda, que ainda vai ser executada, e a única coisa existente é o terreno. Quando a gente vai discutir sobre uma cidade do porte de Juazeiro, da importância de Juazeiro, mas que não tem instrumento de ordenamento urbano atualizado, a gente vai estar construindo e fazendo um projeto às escuras, sem ter a compreensão do todo.”
O novo Plano Diretor Municipal foi elaborado através da parceria entre a Prefeitura Municipal e a Universidade Federal do Cariri, e contou também com membros de outras instituições de ensino. O documento é uma atualização do plano em vigência, datado do ano 2000, que ainda carrega a sigla de Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), ou seja, que não inclui dentro dos estudos a área rural. O plano diretor é um instrumento que normatiza o crescimento e o desenvolvimento de uma cidade. Entre as várias problemáticas associadas à falta desse instrumento legal, está o crescimento desordenado de uma cidade que, por sua vez, impacta diretamente na oferta de serviços de infraestrutura, transporte, saúde, meio ambiente e, claro, de saneamento básico, como o acesso à água e ao esgoto.
Além do plano diretor, outro obstáculo apontado por Amanda é a falta de conscientização e de uma educação ambiental na sociedade no que tange à importância do esgotamento sanitário. Isso porque muitas pessoas têm resistência em ligar suas casas à rede de esgoto. Atualmente, 41,42% dos domicílios juazeirenses possuem rede factível à ligação de esgoto, porém apenas 32% desses locais estão efetivamente conectados, segundo dados da Ambiental Ceará.
Conforme a docente, por se tratar de uma população que conviveu por muitos anos com a falta de saneamento, esse problema crônico foi se tornando progressivamente parte integrante da realidade local, passando despercebido pelas pessoas que vivem nessas áreas. Além disso, outro fator citado pela professora é a falta de compreensão sobre os benefícios a curto e longo prazo do tratamento adequado e da destinação correta do esgoto.
“Quando se vê a construção de um hospital, de uma praça ou de uma quadra poliesportiva, as pessoas enxergam diretamente o benefício daquela infraestrutura para a cidade, para a população. Esgotamento sanitário é visto como um transtorno, porque é interditar a via, é cavar buraco, locais onde o asfalto já foi feito, é rasgar asfalto. Então, é visto como um fator muito de rejeição da população”, ressalta.
Falta de esgotamento sanitário gera problemas na saúde e educação
A mesma Tayná, que sai de sua casa todos os dias para trabalhar em uma unidade de ensino infantil, é testemunha de como a falta de saneamento impacta diretamente o rendimento escolar das crianças, que adoecem devido à exposição a vírus e bactérias presentes em esgotos a céu aberto. “Essas crianças na periferia enfrentam muitos desafios. A escola onde trabalho fica em uma área muito carente. O problema não é tanto a evasão escolar, mas sim o adoecimento dessas crianças. Há também a falta de preocupação por parte de alguns pais, o que agrava ainda mais a situação”.
No biênio 2023-2024, segundo dados da Secretaria de Saúde de Juazeiro do Norte (Sesau), o município registrou um total de 4.577 crianças que adoeceram em decorrência de infecções diarreicas, patologias que podem estar relacionadas à falta de saneamento. Deste total, 2.536 crianças pertenciam à faixa etária de 1 a 4 anos, e 1.431 crianças, à faixa etária de 5 a 9 anos, ou seja, em idade escolar.
“As doenças associadas ao contexto hídrico e ao esgotamento sanitário afetam principalmente crianças menores de 6 anos, especialmente nas áreas rurais, quilombolas e indígenas. Essas crianças são afetadas por infecções gastrointestinais, verminoses e arboviroses, como diarreia, cólera, dengue e leptospirose. O acometimento recorrente por essas doenças pode comprometer o desenvolvimento e crescimento das crianças, impactando, inclusive, o desempenho cognitivo e motor”, detalha Madeline Abreu, especialista em Saúde e WASH (Água, Saneamento e Higiene) do Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil (UNICEF Brasil), atuante no Ceará.
A especialista ainda lembra que, entre os fatores associados à pobreza no Brasil, o principal é a falta de saneamento. “Em nível nacional, a principal dimensão que contribui para a pobreza é o saneamento (33,8%), seguida pela renda (32,9%). Ou seja, de cada dez situações de privação que afetam crianças e adolescentes no Brasil, três estão associadas à falta de banheiro de uso exclusivo ou de um sistema adequado de esgoto, e outras três estão relacionadas a um nível de rendimento inferior à linha da pobreza ou pobreza extrema. O acesso à água, saneamento e higiene é essencial para garantir o acesso a outros direitos, pois estamos falando de condições básicas para a existência e manutenção da vida”, descreve.
No Brasil, segundo o relatório Saneamento e Doenças de Veiculação Hídrica 2019, do Instituto Trata Brasil, as doenças de veiculação hídrica foram responsáveis por 273 mil internações, resultando em um custo de R$ 108 milhões em hospitalizações. Somente no estado do Ceará, 15.604 pessoas foram internadas em decorrência dessas patologias.
Para o gerente de unidade da Ambiental Ceará, Tadeu Bezerra, a única forma de inibir o número de intercorrências provocadas por doenças originadas da falta de saneamento é oferecendo o serviço à população. “Quando uma pessoa vai ao posto de saúde, faz uma consulta médica e é medicada, o sintoma é tratado e em algum momento, a pessoa melhora. No entanto, mesmo após essa melhora, ela continua vivendo em uma situação insalubre, ou seja, a causa do problema não foi solucionada, especialmente se o serviço de tratamento sanitário ainda não estiver disponível. Isso faz com que a probabilidade de o problema ocorrer novamente, em um curto intervalo de tempo, seja muito alta. Na verdade, é algo previsível e praticamente inevitável enquanto a causa raiz não for tratada”, afirma.
Justamente por esse fato, Bezerra ressalta a importância de enxergar a adesão do esgotamento sanitário não como um gasto, mas sim como um investimento, principalmente, em saúde. “É uma ação que proporciona qualidade de vida, tirando a família de uma situação insalubre e reduzindo os riscos de doenças relacionadas à falta de saneamento básico. Trata-se de garantir que, por exemplo, seu filho ou filha não adoeça devido a problemas que poderiam ser evitados com infraestrutura adequada”, pontua.
Abastecimento de água também pode ser comprometido
Outra área diretamente impactada pela falta de esgotamento sanitário é a qualidade da água consumida pela população. De acordo com o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Juazeiro do Norte possuía 32.132 domicílios com fossas sépticas ou filtros não conectados à rede de esgoto, além de 27.799 domicílios que ainda utilizam fossas rudimentares ou buracos. Ambos os sistemas representam um risco significativo para o abastecimento hídrico da cidade, que depende de poços subterrâneos. Isso ocorre porque as fossas podem contaminar o solo e o lençol freático com patógenos e substâncias prejudiciais à saúde humana.
Além das fossas, outro problema evidenciado pelo Censo 2022 são as pessoas que sequer têm acesso a um sanitário, o que as obrigam a realizar suas necessidades básicas de higiene na própria natureza.
Quer o esgoto seja lançado a céu aberto, quer seja lançado diretamente na natureza, em todos os casos, segundo Tadeu Bezerra, os corpos d’água podem ser contaminados, e a resolução desses problemas é crucial, pois, caso contrário, a capacidade de resiliência do meio ambiente será ainda mais comprometida.
“O esgoto lançado nas ruas contamina a vida aquática e os ecossistemas de rios, riachos e açudes. Independentemente de ser fossa ou lançamento direto, é fundamental interromper esse despejo assim que a rede coletora de esgoto estiver disponível, para minimizar os impactos e evitar a perda de sistemas de abastecimento de água. O meio ambiente tem a capacidade de se regenerar, mas para que isso aconteça, é necessário resolver o problema. Sem isso, ele não conseguirá se regenerar”, conclui.
Avanços e desafios no cumprimento do novo marco legal em Juazeiro do Norte
O novo Marco Legal do Saneamento Básico estipula que, até 2033, todas as cidades brasileiras devem ter 99% da população assistida por abastecimento de água e 90% com acesso à coleta e tratamento de esgoto. Mas será mesmo possível afirmar que o país conseguirá cumprir essa meta nos próximos 9 anos? Para a presidente executiva do Trata Brasil, Luana Pretto, o cenário atual aponta que algumas cidades conseguirão, mas outras precisarão de mais tempo.
“Essa realidade varia de acordo com a localidade. Há regiões com indicadores ruins e sem investimentos expressivos, o que torna a perspectiva de aumento da cobertura de saneamento bastante limitada. Se uma região tem indicadores precários, mas não recebe investimentos, nem possui um planejamento sólido para alcançar as metas, a universalização do saneamento dentro do prazo previsto torna-se extremamente difícil. Por outro lado, há lugares, como Juazeiro do Norte, onde já existem contratos e investimentos em andamento. Nesses casos, alcançar a universalização até 2033, ou até mesmo até 2040, que é o prazo máximo dependendo da capacidade econômico-financeira, é algo possível.”
Desde que a Ambiental Ceará assumiu a operacionalização do esgotamento sanitário em Juazeiro do Norte, 9 km de redes coletoras de esgoto já foram construídos na cidade. Esse avanço permite que mais de 1.740 imóveis juazeirenses se conectem ao sistema de esgotamento sanitário. Mesmo com esse progresso significativo, 55% dos juazeirenses ainda continuam desassistidos pelo serviço.
Para alcançar a universalização até 2033, Juliana Filgueiras, coordenadora da Unidade de Negócio de Parceria da Região Metropolitana do Cariri, ressalta que a Cagece, empresa responsável pelos serviços de esgotamento sanitário aos quais a Ambiental presta suporte, tem realizado uma fiscalização para garantir que todas as cidades incluídas na PPP (Parceria Público-Privada) recebam os serviços de saneamento básico, conforme as metas estabelecidas no contrato de parceria.
“Fiscalizamos esse contrato de maneira rigorosa, com metas claras de fiscalização. Trata-se de um contrato bem elaborado, no qual estão especificadas as obrigações da Ambiental Ceará e da Cagece, enquanto companhia de saneamento. O documento também define como será feita a fiscalização, pois há metas a serem cumpridas desde o primeiro até o último ano, dentro dos 30 anos de vigência do contrato. O principal objetivo é que, até 2033, 90% da rede de esgoto e do sistema de esgotamento sanitário já estejam implementados nos municípios contemplados pela PPP”, enfatiza.
Apesar de Juazeiro do Norte estar em constante crescimento demográfico, muitas vezes de forma desordenada, Juliana antecipa que o objetivo é atender todo o perímetro abarcado pelo contrato, mesmo que em algumas localidades o serviço demore um pouco mais para chegar. “Se estou crescendo de maneira desordenada, às vezes a obra não consegue acompanhar esse crescimento. Mas, durante os próximos nove anos até 2033, Juazeiro pode crescer com dois ou três novos bairros. Eles serão atendidos? Sim, serão. Fizemos uma modelagem abrangente para toda a área, e esses novos bairros, à medida que surgirem e forem regularizados, também serão integrados ao sistema”, afirma.
Entre avanços e obstáculos, Juliana cita o apoio da população como uma ferramenta crucial para a completa efetivação do serviço de esgotamento sanitário da cidade. Segundo ela, de nada adianta levar o serviço a toda a cidade se as pessoas não entenderem a importância de utilizá-lo e dar o destino correto ao esgoto.
“O objetivo da universalização só é cumprido quando a população utiliza esse serviço. Não faz sentido universalizar todo o município de Juazeiro, deixar a rede de esgoto passar na frente do imóvel do cliente e ele não utilizar. É um investimento que não terá uso. Então, o nosso grande desafio é a utilização dessa cobertura de esgoto pela população”, afirma.
O que significa ter uma cidade saneada?
“Eu imagino que, em Juazeiro, as pessoas ficariam mais à vontade para querer passear. Juazeiro é uma cidade turística. Eu acho que é muito mais vantajoso ir para um lugar onde você não tem problemas com a água e o mau cheiro.” Assim descreve Tayaná, a profissional da educação mencionada no início da reportagem, como ela imagina um Juazeiro do Norte totalmente saneado.
A fala e o anseio de Tayaná também são reiterados por Luana Pretto, que explica que os benefícios de uma cidade saneada englobam áreas como saúde, educação e desenvolvimento econômico.
“Muitos bancos e instituições financeiras, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), priorizam investimentos em regiões onde o saneamento já está avançado. Uma cidade não saneada pode, inclusive, enfrentar dificuldades para obter recursos para outras áreas, como pavimentação ou drenagem. Por isso, garantir o saneamento básico é essencial para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida dos cidadãos”, reforça Luana.
Entre as várias mudanças observadas ao longo dos anos em que trabalha com a pauta do saneamento, Luana cita que é notório o impacto da universalização do saneamento na vida das pessoas. “São donas de casa que não conseguiam mais sentir o cheiro da comida porque o esgoto a céu aberto perto da sua casa tinha um cheiro tão ruim que elas nem conseguiam sentir o cheiro da comida. São comunidades que não têm banheiro, onde as mulheres são violentadas no caminho até o banheiro e onde recebem água apenas uma vez por semana. A gente vê uma mudança”, lembra.
Para um Brasil próximo, caso se efetive o que prevê o novo Marco Legal, Luana projeta um cenário otimista, semelhante ao anseio de Tayná e dos mais de 40 milhões de brasileiros desassistidos dos serviços de esgotamento sanitário e saneamento básico em geral.
“Uma cidade totalmente saneada é aquela que tem rios limpos, mares despoluídos (quando houver), turismo desenvolvido, valorização imobiliária, maior produtividade e menores gastos com saúde pública, já que as pessoas ficam menos expostas a doenças relacionadas à falta de saneamento. Nessa cidade, as crianças terão um futuro mais promissor, com maior escolaridade, melhor perspectiva de renda e mais oportunidades de emprego”, conclui Luana.