O designer L.* perdeu a conta de quantas vezes teve de cuidar do amigo “inimigo do fim”, que demandava atenção a qualquer hora do dia e da noite. “Ele brigava com a mulher e batia aqui em casa para se para se alojar. Já chegava bêbado e queria beber mais, tentava sempre impor a sua vontade”, narra. “Eu saía esgotado dos encontros que deveriam ser uma troca. Sabe aquela pessoa que quer sugar você achando que vai solucionar a vida dela?”. L. preferiu não brigar nem romper a amizade. Mas aprendeu a colocar limites para se proteger. “Ele não é uma má pessoa e, sim, exaustivo. Não atendo mais às suas ligações depois das dez da noite.”
A descrição do comportamento do amigo do designer tem nome e é muito comum: assim como acontece em relacionamentos amorosos ou relações de trabalho, vínculos entre amigos também podem tornar-se abusivos. “É um tema que aparece muito na clínica, inclusive entre as crianças”, diz a psicanalista Carolina Serebrenick, que menciona alguns meios para identificar uma amizade tóxica: “Um dos principais sinais é o quanto o outro traz uma cobrança indevida e excessiva. A amizade é uma construção constante. Uma hora pode estar mais próxima, em outra, mais separada. É necessário haver essa compreensão”.
Segundo a psicanalista Sandra Niskier Flanzer, o abuso numa relação de amizade é semelhante ao que pode existir entre parceiros amorosos, patrão e funcionário, médico e paciente. “Um, imbuído de um voto de confiança que o outro o confere, exerce esse poder de maneira nociva, em benefício próprio. Estamos diante de uma amizade tóxica toda vez que alguém se acha no direito de passar desse limite”, explica. Muitas vezes, o sintoma do abusador se confunde com o do abusado e é estabelecido um pacto difícil de ser quebrado. “Clinicamente, é possível observar um número cada vez maior de pacientes se defrontando com essas questões e se questionando sobre o seu lugar nessas relações.”
Para a escritora Mayra Sotto Mayor, que retratou uma situação semelhante no livro “Bordados imperfeitos”, a intuição, com a maturidade, fica mais aguçada. “Afaste-se de controle, ciúmes, daquela pessoa que, em vez de te colocar para cima, te deixa para baixo e de quem você prefere esconder as próprias conquistas”, aconselha, lembrando a fábula do porco-espinho. “Não tem como abraçá-lo sem se machucar. O melhor é mandar muito amor à distância.”
Fonte: O Globo