Quando o cineasta Sebastião Dias Braga, de 37 anos, teve a notícia de que o câncer voltou mesmo depois de um transplante de medula, a sensação foi de choque e medo. Ele, que já havia passado por tantos tratamentos agressivos contra um tipo grave de leucemia, de repente se viu sem alternativas. Foram dias sem uma luz no fim do túnel até que uma possibilidade surgiu: participar de uma terapia ainda experimental – mas bastante promissora – nos Estados Unidos.
Há um mês, Braga e o marido Thiago Amaral, de 39 anos, estão no James Cancer Hospital, em Ohio. Lá, Tião, como é chamado pelos amigos, foi submetido a um tipo de terapia inovadora contra o câncer, o CAR-T Cell triplo. A terapia faz uma modificação genética nas células para induzi-las a combater a doença e é considerada a última fronteira nos tratamentos contra o câncer com origem no sangue, como leucemias e linfomas.
“Ter a possibilidade de uma terapia avançada como essa é maravilhoso, é um alívio”, diz Tião. Ele descobriu a leucemia em março de 2020, depois de sentir dores nas pernas. Inicialmente, passou por quimioterapias mais leves, que fizeram a doença entrar em remissão. Meses depois, porém, o câncer retornou e, em abril do ano passado, Tião teve de passar por um transplante de medula.
A recuperação era difícil e lenta, mas, no início deste ano, a vida finalmente começava a entrar nos eixos – até que veio um novo revés. “No final de março, comecei a sentir sintomas no corpo. Diagnostiquei a recidiva da doença, 11 meses depois do transplante”, lembra. “É o momento mais crítico porque os médicos não podiam optar por fazer outro transplante.” Ele perguntou quanto tempo teria de vida e ouviu a palavra “meses”.
O cineasta já tinha escutado sobre a terapia CAR-T, mas sabia pouco sobre o tema. Por indicação de uma amiga, procurou o hematologista Vanderson Rocha, professor da Universidade de São Paulo (USP) e um dos principais pesquisadores da terapia no País. Foi ele quem sugeriu que Tião fosse incluído em um protocolo de pesquisa nos EUA, conduzido pelo também brasileiro Marcos de Lima, chefe do Programa de Transplante de Medula e Terapia Celular da Universidade Estadual de Ohio.
A partir de então, começou uma batalha para que Tião fosse aprovado como voluntário na pesquisa – é necessário um aval da Anvisa americana, a Food and Drug Administration (FDA). Também era preciso juntar dinheiro para pagar a viagem e o custeio de despesas médicas no hospital. Uma campanha online que contou com a participação de amigos e artistas arrecadou R$ 950 mil.
CAR-T TRIPLO ATACA TRÊS ALVOS DO CÂNCER
Lima, médico brasileiro que trabalha nos EUA há mais de 20 anos, iniciou uma pesquisa com células modificadas para atacar o câncer por três alvos diferentes – por isso, a técnica é chamada de CAR-T triplo. Diferentemente do CAR-T convencional, que ataca apenas um dos marcadores do câncer, a hipótese da equipe é de que o CAR-T triplo tenha mais sucesso na remissão da doença justamente por ser mais abrangente.
Uma possível vantagem seria evitar recaídas da doença. Segundo Lima, há relatos de recidivas em parte dos pacientes que fizeram o CAR-T convencional porque, ao atacar apenas um marcador específico presente em células tumorais, a doença encontra novas “brechas” para continuar agindo. O pesquisador diz que Tião foi o primeiro voluntário de que se tem notícia em uma pesquisa do tipo em todo o mundo.
A terapia começa com a coleta de linfócitos T, que são células de defesa, do paciente. Essas células são modificadas em um laboratório para se tornarem capazes de reconhecer e atacar as células tumorais. Depois disso, os linfócitos T são injetados novamente no paciente e, a partir de então, a expectativa é de que o próprio corpo comece a debelar o câncer. O objetivo final é a remissão da doença de forma duradoura.
A terapia com CAR-T convencional já é comercializada nos Estados Unidos e alcançou bons resultados em vários pacientes. A primeira a ser tratada com essa técnica se submeteu à terapia aos 6 anos de idade e hoje está com 16 – sem sinais da leucemia. No Brasil, até mesmo a terapia convencional com CAR-T avança lentamente por falta de incentivo. Não há esse tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pacientes que já passaram pelo procedimento tiveram de ser incluídos em grupos de centros de pesquisa brasileiros. “O Brasil está muito atrasado em relação ao CAR-T. Temos pessoas, só não tem dinheiro”, lamenta Rocha.
Em fevereiro deste ano, a Anvisa aprovou pela primeira vez um tipo de tratamento com CAR-T no Brasil, mas o acesso ainda esbarra nos custos elevados de enviar o material biológicos a laboratórios no exterior. Uma das soluções é fortalecer a produção de células modificadas em centros próprios: no mês passado, o governo paulista anunciou investimentos em dois núcleos de terapia celular
O momento de infusão das células modificadas em Tião foi acompanhado com emoção no hospital. Além de ser o primeiro teste com CAR-T triplo no mundo, também foi a primeira vez que o James Hospital fez a modificação das células no próprio laboratório – o que reduz custos e tempo de tratamento. Antes, era preciso enviar as células a laboratórios externos, que cobram caro para fazer a reprogramação genética.
Tião recebeu 40% das células modificadas – e teve febre forte dias depois, o que é um sintoma esperado. Agora a equipe avalia se será necessária a injeção do restante ou se a terapia até então será suficiente. “Esperamos que, com a evolução dos dias e com a batalha celular dentro do meu corpo, a doença entre em remissão o quanto antes e as células da medula comecem a se multiplicar normalmente, de forma saudável e consistente.”
Dias após a infusão, a equipe médica detectou que as células geneticamente modificadas estavam se reproduzindo no corpo de Tião – o que é um primeiro bom sinal. Lima pondera que ainda é cedo para medir resultados da pesquisa: uma conclusão sobre a eficácia do tratamento CAR-T triplo deve ser alcançada somente após dois anos, mas há motivos para ter esperança. Depois de Tião, outro paciente deve receber a terapia experimental nesta semana.
Fonte: Estadão